Um conto, dois contos, três contos de réis! Já dizia o viajante desembestado, sem os dentes da frente, com preguiça, recebendo as marolas do dia.
Não é fácil, falou o pescador.
O que não é fácil Carolino? Perguntou o viajante. Tudo não é fácil.
Deu para filosofar Seu Carolino?
E não seu moço? Do contrário, o que faço com o meu desgosto? O que faço com a minha fome, com meus desejos, medos e ausência de conselhos do divino, que fala pouco e baixinho?
É. Vou-me embora. Não sou de filosofar, mas apenas do rigor do dia, pois piso, ando, ando, piso e no andarilhar, vou escorrendo o caldo das fobias e no mesmo dia, já surrado, descanso no final do dia, com fome ou com sede, cheio de letargias, já sem ação para pensar em alforrias. Cansado do dia sabe?
E se sei, disse Carolino.
Mas aí tá o problema seu moço, disse o Viajante:
– Sei que ambos estamos por vezes sem força para NADA, mas, sempre existe um, MAS… Enquanto viajante, nessas andanças de todo dia, sinto, no meu coração, uma eterna busca e UMA ÚNICA RESPOSTA.
Uma resposta? Carolino fez que não com a cabeça. O viajante tomou a narrativa e disse:
-Lembro de uma história bem interessante que aconteceu entre uma Flor e uma Rosa.
-Ouxi, mas não é tudo Flor?
É sim Carolino, mas sendo Flor ou Rosa ou menina Flor, tudo, a mesma coisa, no detalhe, muda tudo.
Então conte, disse Senhor Carolino. O viajante se pôs a falar:
Certo dia a Flor, ainda desabrochando em Rosa, contou à Rosa o que não queria ser.
A Rosa disse:
-Pois diga minha flor, por que não queres ser Rosa, o que te fiz? Por que não queres ser igual a mim?
-Sabe Rosa, andei observando todo o seu esforço em nascer, crescer, desabrochar e depois partir, num morredouro solitário. É bela e triste a sua vida, uma tristeza sem fim. A sua beleza deveria ser infinita. E por que, não é? Sendo assim, prefiro nem nascer. Um trabalho danado, tanta força que faço para me estender sobre o galho. Quero não Dona Rosa espinhosa.
E você tem escolha Flor?
Acho que não. Queria parar por aqui ou nem existir. Como faço?
A Rosa em silêncio, se esforçou ao máximo e com o seu caule, dentro do vasto campo, entrelaçou-se à Flor que ainda não era propriamente uma Rosa, tal como ela.
A Rosa não falou Carolino, nada, mas apenas entrelaçou-a em seu corpo com todo o amor que podia dar. Quando avistei aquilo em minhas andanças parei e fiquei ali alguns minutos observando e pensando porque a Rosa toda poderosa se enroscou na Flor, afinal não sabia da história.
Ainda curioso, Viajante que sou, fui lá ver de novo a cena e observei que a Flor ainda não havia virado Rosa e estava murchando, mudando de cor. E assim, dia após dia, em uma fobia, a flor caiu do seu pendente, deixou de ser o que Deus colocou em mente, o processo parou!
Fiquei triste Carolino, por não ter ajudado, não impedi aquele assassinato do olhar de quem só admira o ato. Sentei-me e fiquei com gosto de culpado entre os lábios.
Tanta coisa passou pela minha cabeça, tanta coisa e aí fiquei indignado com Deus. Chamei ele e me acudiu num sopro.
Carolino arregalou os olhos, curioso para entender aquilo tudo ou melhor, saber porque a bendita Rosa matou a flor que já não queria ser Rosa e se perguntou:
Foi um ato de amor, de dor ou algo se rompeu na inteligência da vida? O quê desta alquimia não deu certo?
Carolino pensou na vida dele… mas, o Viajante voltou à narrativa:
-Sabe Carolino, foi belo assistir tudo aquilo, disse o viajante. Deus pai ainda me soprou:
Tu achas que faltou amor?
-Tu achas que a Rosa matou a Flor?
Tu achas que faltou o verdadeiro amor?
Tu sabes verdadeiramente o que aconteceu com a Flor?
Sabias que ela não queria viver?
O viajante disse:
Sabia não Deus pai. O pai disse:
-Então vá lá ver.
O Viajante chegou perto da flor, já murcha, sem vida, com a Rosa a segurando, pois a envolveu sem mais soltar. Surpreendentemente a Flor já quase morta lhe soprou:
Seu Viajante, olhe para baixo.
O viajante olhou e percebeu uma coisa. Carolino já curioso. Solta logo homem! Rindo, o Viajante disse:
Quando mirei toda a cena e me abaixei, além do céu azul sob a minha cabeça, percebi que o caule da flor estava partido por algum animal que ali passou.
A Flor tentou ser Rosa e a Rosa lhe doou seu caule para ampará-la. A Flor que já tinha dúvidas da sua existência efêmera, recebeu amor e com este amor viveu, ainda sem ser Rosa Flor.
Em resumo Carolino. A dor, a aflição do dia a dia não é mais poderosa do que o AMOR. Acho então que estamos aqui para ver, ouvir e sentir todas as expressões desse amor. Só cuidado com a lente que usa, para não embaçar a vista.
Senhor Viajante, disse Carolino:
-A história é linda, mas preciso ir pescar, que é o que tenho para HOJE, AINDA que com a mão esfolada do anzol que atravessou.
Senhor Carolino, sou exímio pescador e posso lhe estender o meu braço ainda sem dor. A Rosa riu e olhou para o céu límpido, azul, sem nuvens naquele dia.
5 respostas
Minha escritora favoritaaaa!
Esse conto me atravessou como só a vida atravessa com beleza, dor e uma pitada de silêncio no final. Entre marolas e espinhos, o Viajante e Carolino conversam como a gente conversa com a alma quando o dia cansa demais. E então, no coração da história, a Flor que não queria ser Rosa… me lembrou de quantas vezes a gente só queria não ser. Mas o amor mesmo silencioso, mesmo sem conseguir impedir a dor pode ser caule, pode ser sustento, pode ser entrega.
É sobre olhar além da superfície, sobre entender que nem toda desistência é fraqueza, e que às vezes, o verdadeiro milagre é alguém ficar ali, mesmo sem poder salvar. Esse conto não só se lê… ele se sente, se escuta, se respira.
Obrigada por esse mergulho.
Que história comovente Lídia! Lendo e relendo, observei que precisamos ter um olhar atento para os acontecimentos ao nosso redor, seja com as pessoas que convivemos ou a que simplesmente cruzamos, pois não sabemos quais destas precisa de uma palavra, um abraço para que esta continue sua caminhada pela vida.
A Rosa foi atenta a isso e o viajante só percebeu este ato de amor após Deus ter chamado a atenção dele solicitando que observasse mais de perto a cena.
Sinto-me feliz, grato e orgulhoso por conhecer esta brilhante e talentosa escritora. Estarei atento às suas publicações, pois sei que elas irão engrandecer a minha alma.
Abraços
Muito bom. Parabéns Lídia.
Devo confessar que, lendo esse conto, me veio uma sensação de estar lendo Ariano Suassuna.
Que conto bom.
Que narrativa boa.
Que escrita maravilhosa.
Parabéns!
Gostei desse conto. A Flor, que recusa seu destino de ser Rosa, representa aquele que questiona sua própria existência, que duvida da beleza que pode vir a ser. A Rosa, por sua vez, simboliza o acolhimento, um gesto de amor incondicional. O final, qdo Carolino volta à sua pescaria com a mão machucada, sugere que a beleza da vida está também nas pequenas dores do dia a dia e nos mínimos gestos de cuidado entre as pessoas.