BONECO DE PANO
Meu pai precisava de um trabalho. Já havíamos vendido todos os poucos bodes e cabras que restaram da humilde herança do vô. As hortaliças minguadas mal davam para comprar o pão e o café. Mas sempre minha mãe arranjava um meio honesto de driblar as dificuldades. Esse era, na verdade, o grande bem deixado pelo nosso vô; nas maiores privações, mais esforço e trabalho. Minha mãe saía e vendia uns panos de prato, que ela mesma costurava, ou fazia faxina na casa de alguém. Voltava só no início da noite, com uns trocados, o rosto ungido de suor e carimbado de cansaço e sol. Nossa preocupação era que ninguém queria dar serviço para meu pai depois que ele saiu da cadeia. Confiar em uma pessoa, que havia ficado tanto tempo preso por ter abusado bastante de uma mulher desconhecida ao satisfazer suas vontades de homem, não seria uma tarefa fácil.
A escola do lugar era o retrato da falta de incentivo para qualquer criança, ainda mais criança sem muito alimento em casa. Um prédio sem graça, sem cor, sem brilho, sem nada; cheio apenas de poeira e terra, com umas cadeiras quebradas, um quadro furado de tanto uso, um telhado que parecia que iria desabar a qualquer momento, e uma professora que detestava estar ali muito mais que todos nós juntos. Ela deixava isso claro em atitudes e palavras. Sempre ouvíamos: “Só estou aqui porque não tem outro jeito; inferno!”. Depois coçava as pernas secas e cinzentas, parecendo que havia pegado sarna de cachorro vadio; cuspia no chão de cimento esburacado e logo após passava o pé com uma sandália suja e gasta. A coisa ficava nojenta demais nos dias em que ela estava tossindo. A torcida da turma era que ela morresse esturricada no meio do terreiro. Os alunos comentavam que ela iria gritar “inferno!” e até o Diabo ficaria incomodado com o grito. Outro desejo da classe era que ninguém tivesse vontade de ir ao banheiro, pois esse era pior do que o da bodega de seu Joça, lambuzado e fedorento, que só sentíamos ânsia de vômito. A fedentina se anunciava de longe. Eu preferia o mato para fazer minhas necessidades; bem mais agradável que aquele desastre. Só uma razão ainda nos empurrava, quando nos empurrava, para aquele lugar chamado de escola ― o suco ralo de umbu com uns biscoitos secos oferecidos como merenda. Nada mais.
Não era a única, mas, das poucas alternativas que existiam ali, a olaria dava pelo menos a esperança de um serviço um tanto mais duradouro. Não se pagava bem aos operários, no entanto as pessoas gostavam de trabalhar na olaria de seu Chico; ele era próximo de todos, visto como um de nós. Havia morrido, infelizmente, e o lugar estava fechado, sem funcionamento. Corria o boato que um senhor rico da cidade grande mais próxima iria comprar o local e reabrir a produção de telhas e tijolos. Tínhamos essa esperança a fim de melhorarmos um pouco a nossa condição e também nos livrarmos do pai durante todo o dia. Ele era bruto, falava pouco e adorava bater. Tudo era uma desculpa para o pai descer o reio no nosso lombo; o troço já ficava pendurado na parede da sala, indicando que ninguém deveria se esquecer de que ali o couro comia sem dó nem piedade. Sempre que possível, fugíamos dele, nos afastávamos da dor; mas, à noite, todos estariam de volta, reunidos embaixo do mesmo teto. Permanecíamos atentos e com medo até a hora do descanso. Na casa pequena, dormíamos praticamente todos juntos, divididos apenas por uma cortina velha e transparente. Ouvíamos o pai e a mãe se remexendo e fazendo uns ruídos estranhos, uns gemidos parecidos com dor. Eu já sabia do que se tratava. Os meninos daquela minha idade, soltos o dia inteiro, conheciam logo sobre esses assuntos; começávamos aprendendo com os animais. Mas meus irmãos menores ainda não compreendiam o que acontecia naquelas ocasiões entre o pai e a mãe.
O boato se confirmou; a olaria de portas abertas mais uma vez. Os antigos trabalhadores continuariam em suas funções, e logo precisariam de outros operários, pois o novo dono queria aumentar os lucros, compensar os investimentos. Víamos a estrada e seus caminhantes seguirem rumo à lida. Até a olaria não era longe e, para chegar lá, precisava passar em frente a nossa casa. A novidade era que todos os dias uma caminhonete vermelha, grande e reluzente, dessas que, para nós, só existiam em filmes estrangeiros, riscava o trajeto de poeira. Vinha veloz e seguia veloz. Porém, quando percorria o trecho próximo a nossa casa, ela diminuía o ritmo de tal modo que quase parava; fazia, lentamente, aquele pequeno percurso. Tínhamos certeza de que era uma atenção especial do motorista, porque, na hora da passagem do carro, estávamos sempre brincando de bola. Um atropelamento seria fatal. Ninguém conseguia ver quem ia dentro do veículo, seus vidros fechados eram totalmente escuros.
Abertura de novas vagas; a olaria precisando de mais trabalhadores. Meu pai acordo de madrugada e correu até a fila dos desempregados. Ali não era a fé que removia montanhas, era a necessidade. Eu mesmo já havia entrado na partilha para conseguir dinheiro. Ia à feira livre ajudar a carregar qualquer tipo de peso, fardos de verdura ou fruta, pedaços de bode, sacolas de dona de casa; tudo que desse umas moedas para entregar à nossa mãe eu fazia. Se antes já não gostava de ir àquela escola que nos davam como se fosse um enorme favor, naquele momento então não queria nem passar por perto. Não havia vontade, não havia tempo.
Os estudos ficaram somente para depois, e eu os fiz, longe dali, com tamanho zelo e ambição, que era uma forma de revide a toda amargura sofrida no passado. Em casa, até o sol ir nos abandonando atrás da serra, esperávamos meu pai com a notícia da olaria. Na penumbra do final da tarde, ele chegou. Bebeu na caneca de alumínio a água fresca da moringa, enxugou o suor da testa com o dorso da mão, sentou-se com as pernas abertas e ajeitou os cabelos crespos para trás, passando o pente que carregava no bolso da calça. Olhávamos apreensivos.
“Fafá, tome banho; hoje você dorme na casa de seu Gabriel.”
Fafá ficou parado, sem entender direito o que era aquela ordem.
“Vá logo! Parece que é surdo. Ou é doido? A gente fala, e fica aí com cara de besta,
empacado.”
Eu fui o responsável por levar meu irmão até o seu destino naquela noite. Na saída,
encontramos com minha mãe. Apenas perguntou para aonde iríamos àquela hora. Eu disse, e fiquei esperando que, indignada, fosse nos proibir de sair de casa. Ela ficou em silêncio e foi para a cozinha catar o feijão que acabara de trazer da rua. Pela estrada de chão, caminhávamos arrastando os pés como quem nunca quisesse chegar ao seu fim. Meu irmão não falava nada, eu não sabia o que dizer, ia apenas segurando sua mão, puxando seu braço fino de menino magrinho e assustado. Só me lembrava dos passarinhos que pegávamos na arapuca montada lá no mato do nosso quintal.
Ao chegarmos ao casarão branco da praça central ― seu Gabriel havia comprado todas as propriedades do antigo dono da olaria ―, nos deparamos, estacionada próximo à calçada, com a caminhonete vermelha de vidros escuros. Na varanda, nos esperava sozinho um homem não muito velho, rosado, de barba e cabelos bem cuidados; desses homens que encontramos a qualquer hora do dia e sua aparência é sempre a de quem acabara de sair do banho. Levantou-se, ajustou os vincos da lapela do paletó, como se aquilo fosse importante demais, e veio andando lentamente, todo de branco. O pano da roupa era algo que eu nunca tinha visto em minha vida. Parecia que o homem havia ficado em pé e o costureiro fez um trabalho cuidadoso e demorado, seguindo centímetro por centímetro do corpo daquela pessoa, até que surgisse uma roupa tão alinhada igual àquela. O som firme e calmo dos passos do sapato lustroso, batendo contra o assoalho de madeira, tenho ainda hoje presente na memória. Ao caminhar assim de frente para nós, era a imagem viva da gravura de uma autoridade que vi uma vez no livro de História lá no colégio. Fafá estava trêmulo e gelado, eu sentia no aperto de sua mão. O homem parou em nossa frente, alto e magro, cheirava a leite de rosas. Devagar, foi retirando Fafá de mim. Não mencionou uma palavra sequer. Olhou em meus olhos, e em seus lábios um leve sorriso poderia ser notado; igual ao da nossa professora, quando dizia que ali todos eram um monte de burros e nunca conseguiríamos nada que prestasse na vida. Saíram andando em direção ao interior da casa, e, antes da porta se fechar, meu irmão olhou para trás, sem ainda entender o que estava acontecendo. Quem, desavisadamente, olhasse de longe poderia até se lembrar das histórias de um anjo protegendo uma criança.
Naquela noite, eu não consegui dormir. O sorriso discreto e seguro daquele semblante rosa e perfumado, de barba e cabelos grisalhos, e o rosto de incompreensão do Fafá eram pesadelos de olhos insones. Nada adiantava; deitado e inquieto, eu contei todos os bodes de um imenso rebanho a pularem uma cerca de arame farpado, eu virei para um lado e para o outro a noite inteira. E lá, sempre, o par desarmônico em minha frente permanecia.
No outro dia, pela manhã, meu pai não estava em casa. A caminhonete parou no meio da estrada, abriram a porta, meu irmão saltou com um boneco na mão, a porta foi fechada, e o veículo seguiu. Eu olhei para a mãe, ela desviou os olhos e reclamou da demora do caçula para tomar o café preto e comer o pão duro de sal colocados à mesa. Fafá veio caminhando sem pressa, cabeça baixa, passou pela porta e nada falou, procurou o colchão fino jogado no piso de cimento cascudo, se deitou, virou-se de costas e se encolheu todo. O boneco ele havia deixado lá no meio do caminho, onde a caminhonete vermelha deveria, na volta, passar por cima e esmagar por inteiro seu corpo frágil de retalhos de pano.
Carvalho Neto, No caminho de volta
Uma resposta
Um conto chocante que coloca muito bem esse terrível problema. Trabalhei com uma moça, estudada, que falava 4 idiomas. Fugiu de casa no Amazonas aos 10 anos por conta dos abusos que sofria do pai. Como não sabia fazer outra coisa a não ser prostituir-se, ficou nessa vida um bom tempo, mas conseguiu esconder um dinheiro que serviu para ela começar a estudar.. Eu tinha na época 18 anos e admirava essa moça que soube dar a volta por cima e se fazer respeitar. Pena que muitas não conseguem superar esse trauma.