Transformando histórias nordestinas em patrimônios de leitura

Celebrando Montello: Eliane Seixas nos inspira com sua Fanfic de Cais da Sagração

Na seção “Espaço do Leitor”, temos o prazer de apresentar uma fanfic escrita por Eliane Seixas, uma participante dedicada do Clube de Leitura Nordestina Danado de Bom. Inspirada por sua conexão com as obras de Josué Montello, Eliane criou “Para além do Cais”, uma história que se aprofunda no universo de “Cais da Sagração”. Este mês é especial, pois a obra-prima de Montello, “Os tambores de São Luís”, completa 50 anos. Como forma de homenagem ao autor, Eliane nos oferece seu olhar único, enriquecendo a narrativa original e explorando novos horizontes a partir do legado de Montello. Confira abaixo a fanfic na íntegra:

Para além do Cais:

Fanfic do Livro: Cais da Sagração de Josué Montello

No romance, o autor conta a história do Mestre Severino, cujo neto, Pedro, desejava seguir outros caminhos que não ser barqueiro como seu avô queria lhe impor.

Sempre temi a figura de meu avô. Homem rude, sem instrução e extremamente machista. Não havia diálogo com ele. Ou você fazia o que ele dizia para fazer ou se tornava agressivo e crescia para cima, intimidava mesmo. Eu não sentia respeito por ele, apenas o temia. Lembro de quando o Padre Dourado tentou dizer que eu daria um bom padre. Meu avô nem queria ouvir sobre isso. Ele já havia determinado minha vida sem me consultar. Eu seria barqueiro como toda a ascendência dele havia sido. Lourença comentou que eu amava desenhar e imediatamente ele refutou essa possibilidade acusando-a de me criar com mimos.

Pedro pensava essas coisas enquanto arrumava o barco que lhe coubera de herança após a morte do avô. E continuou com suas reflexões: Grande pessoa a Dudu. Ela foi muito esperta, quando meu avô me levou até ela para que me ensinasse a ser homem. Percebeu tudo o que acontecia e conversou comigo sobre coisas que eu jamais ouviria de meu avô. Minha mãe morreu, meu pai nunca voltou do mar e fui criado pela Lourença, quase outra avó pra mim.

O avô do rapaz exigiu que ele fosse ter com uma mulher de “vida fácil”; Dudu, como era chamada no seu ofício. Dudu falou-me sobre a vida (que eu nada sabia) e eu pude expor tudo o que eu sentia, tudo o que me afligia, todas as mudanças no meu corpo e na minha voz naquela adolescência confusa. Ela soube me deixar tão à vontade que no final da conversa eu me sentia até cansado, suado, como se tivesse tirado uma carga do ombro. Dudu combinou comigo que diria ao meu avô que eu havia feito tudo aquilo que ele esperava, para ser um grande macho. Hahahaha, eu ri muito disso tudo.

Pedro lembra bem que naquela noite Dudu segurava suas mãos trêmulas e que estava assustado com tantas revelações, afinal tinha apenas 14 anos, mas Dudu pediu que tivesse paciência e que poderia procurá-la para desabafar sempre que precisasse.
“Você ainda é muito novo, dizia Dudu, e esse mundo é muito cruel com quem não cumpre as regras morais que criaram. Tenha paciência para seguir seus impulsos e seus sonhos. Oh, gente pra julgar os outros!!!! completou ela, e afinal, seu avô não vai durar muito tempo mesmo”.

Nisso ela acertou também. Quando avô e neto chegaram em casa daquela última viagem com tempestade, Lourença os esperava no trapiche e notou a fraqueza e decrepitude do homem que ela cuidara e amara sempre. Meu avô pouco se levantou nos dias seguintes mas percebi a alegria dele ao me olhar e ver que eu soube conduzir o barco em tempo ruim e chegar ao cais em segurança. Pensava Pedro com o peito estufado de orgulho.

A cada dia ele piorava em fraqueza, mas achando que eu seria realmente um barqueiro. Pedro desistiu de tentar convencê-lo do contrário, quase apanhou quando quis se posicionar. Seu avô quando não encontrava a solução que ele queria, matava o “problema”; sei disso porque ele matou minha avó e poderia perfeitamente ter me matado também.

Durante esse tempo, com o avô tendo a vida por um fio, um outro barqueiro de confiança e conhecido acompanhava Pedro à São Luiz, cidade grande mas que ele já estava acostumado com o vai e vem do trânsito. O rapaz aproveitava para comprar seus pincéis, telas e tintas, alguns livros e os trazia muito bem embrulhados para que ninguém visse o conteúdo. Também ia visitar a Dudu que sempre o recebia muito bem. E continuavam com a farsa do machão. Como eu me divertia com ela!!!! Embora São Luiz apresentasse um progresso, uma modernização, havia muitos conhecidos do avô nessa parte mais antiga da cidade. Quem o via entrar com a Dudu e sair muito tempo depois, achava que ele era o garanhão, agora com seus 15 anos.

Foi numa dessas visitas que ela lhe falou sobre o David, com quem experimentou seus primeiros desejos. David havia sido expulso da família, por “querer miar em vez de latir forte” e não encontrando apoio de ninguém, ainda muito jovem, idade de Pedro, prostituíra-se. Arrumava dinheiro de pequenos furtos e enganos. Sem estudo para lhe garantir um trabalho, aprendera com a vida a não respeitar ninguém.

Dudu pediu que Pedro não procurasse por David. Certamente ele iria me arrastar para um caminho de bandidagem. Não era culpa dele o fato de ter se tornado um degenerado e ladrão. Pedro tinha razão; a família e a sociedade são quem mais contribuem com tamanha discriminação. Ela não queria que isso acontecesse comigo, pois sabia que eu queria estudar.

Em casa Pedro sempre procurava atender seu avô, uma vez que Lourença cada dia mais frágil, sofria, “tirando leite de pedra” pra cuidar dele. Um dia o Padre veio e deu a extrema unção ao grande barqueiro, eu mesmo havia ido buscar o Padre, tão velho quanto meu avô. O grande Mestre Severino se foi.

Lourença chorou por dias. Em sua ignorância, tentava justificar os abusos que sofrera com ele. “Ora, ele havia me dado casa e comida, me tirado de um pai que me batia, por que não lhe fazer os agrados também”? Coitada de Lourença. Não percebia que ele havia lhe tratado como uma prostituta, fixa e fiel a vida toda. Quando queria, servia-se dela. Nada muito diferente do que era a Dudu. E depois da morte trágica da avó de Pedro ela ficou com medo de contrariá-lo e ter que sair daquela casa. Nunca fez nada por si mesma, sua vida pertencia ao Mestre Barqueiro e depois a Pedro.

Com a morte do Mestre Severino, Pedro herdou o barco, o Bonança, mas não podia lançar-se ao mundo como queria, porque precisava cuidar de Lourença. Ela agora só tinha a ele. Velha, doente, um pouco confusa da cabeça, continuava a colocar o prato do velho na mesa. E eu trabalhando como barqueiro, sustentava a nossa casa e juntava meus tostões.

Passaram -se 2 anos mais ou menos e ela também faleceu, dormindo, tranquila. Não a vi pela cozinha de manhã e fui até o quarto. Ela estava serena e lívida, parecia sorrir, parecia ter encontrado finalmente a paz.

Pedro agora, já com quase 18 anos sente o vento de liberdade na alma. Mais amadurecido, ganhou corpo, as mulheres o olham sedutoras, mas elas não são o objeto do seu desejo. Gostava mesmo era de admirar o peito nu dos pescadores, dos carregadores, luzidios, suados e fortes. Foi então a São Luiz para anunciar a venda do barco. Assim que vendesse o barco e a casa (praticamente os dois se completavam) ficaria de vez em São Luiz, alugaria um quartinho e se matricularia num curso de Belas Artes ou quem sabe na UFMA. Lá encontraria seu caminho tão sonhado.

Vou levar comigo uma caixa de Pandora com todos os meus segredos, meus desejos mais profundos e profanos, minhas misérias, mas no fundo dessa caixa haverá a esperança que permaneceu comigo o tempo todo. Para sobreviver nessa sociedade é preciso fingir, trancar-se numa caixa ou num armário. Iria à Igreja também rezar e, acender velas para meus avós, pra Lourença, pra minha mãe e meu pai (que nunca conheci).

Somente Deus conhece meus pecados. Pedro não viu mais o David, acho que mais uma vez precisou fugir da cidade e viver por aí escondido ou enganando as pessoas. Pobre e triste sina.

Hoje com 25 anos, já formado em desenho e pintura, deixou São Luiz rumo ao Rio de Janeiro. Faz telas mostrando os barcos de São Luiz e seus pescadores, pinta também a tempestade vista do Bonança, que nem aquela quando ainda estava com seu avô. Sei que minha arte será um sucesso por lá, retratando tudo o que vivi no Maranhão. E eu não estou sozinho nessa jornada, tenho meu parceiro, Paulo, ao meu lado. Juntos, enfrentaremos o futuro.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *