Aprendemos que a palavra saudade se impõe como um vocábulo sui generis, exclusivo da língua portuguesa. É bem verdade que não há em outras línguas correspondentes exatos para ela, mas apenas palavras que lhe são semanticamente próximas, como spleen na língua inglesa, por exemplo. Por outro lado, também é razoável indicar que no cerne da própria língua de Camões, existam somente expressões que a cercam de maneira imprecisa, como a nostalgia e a melancolia. Tais palavras, apesar de não suprirem sinonimicamente o vocábulo saudade, são parte de sua natureza semântica. Daí a intraduzibilidade da palavra em questão: nela estão entrelaçados alguns termos que se complementam e outros que se opõem, como tristeza e alegria; desalento e esperança; prazer e dor; memória e esquecimento. Como disse Fernando Pessoa na seguinte quadra: Saudades só os portugueses/ Conseguem senti-las bem/ Porque têm essa palavra/ Para dizer que a têm…
A saudade como vocábulo é, sem dúvida, uma “invenção” portuguesa. Uma palavra hasteada sobre paradoxos internos que se cruzam e se acomodam harmonicamente dentro do próprio significado resultante, dando à palavra saudade a coerência na qual se cristalizou. Todavia, o sentimento saudoso — que também se ergue sobre as contradições da alma — é uma emoção universal. A diferença está no fato de que, para os falantes de outras línguas, é necessário um esforço bem maior (e em muitos casos, inútil) para expressar a algaravia de sensações que no português sintetizou-se limpidamente numa palavra só: saudade. Com efeito, essa solidão vocabular (palavra só) que caracteriza a palavra saudade, também faz parte de sua gênese, estando elas, solidão e saudade, intrinsecamente ligadas.
Manifestada ancestralmente em meio ao povo galego-português e transmitida pela arte dos trovadores, como na “saudade embrionária” das Cantigas de Amigo, a saudade, como palavra, foi conceituada e posta em questão, primeiramente, pela inteligência sensível de um rei, o chamado “Rei-Filósofo” Dom Duarte. Em seu tratado Leal conselheiro, escrito no século XV, a saudade (ou suidade) é apresentada como uma espécie de “senhora melancólica do tempo”, capaz de atualizar as sensações do passado numa relação complexa que se apresenta como um problema filosófico, psicológico e cultural. Ou seja, das palavras do rei de Portugal, símbolo de sua nação, a saudade emerge como marca (cicatriz?) simbólica do povo português.
De tão enraizada ao imaginário lusitano, a saudade chegou a ser alçada ao campo da metafísica como aquele termo que contempla e funde a origem e o destino do país. Temos, assim, o quadro quimérico de um povo predestinado a unir as nações, vivendo num estágio de “entre-lugar” e de “entre-tempo” à espera do “passado-futuro”, olhando constantemente o Atlântico a partir de um sentimento compartilhado: a saudade.
Nada seria mais apropriado para sintetizar essa ideia de nação predestinada do que a arte. Nem mesmo a história oficial, nem os documentos assinados por reis ou os monumentos erguidos em praça pública poderiam traduzir e, num só tempo, expandir esteticamente o imaginário coletivo de Portugal como fez o poema épico Os Lusíadas, de Luis de Camões, publicado em 1572.
Podemos considerar que a saudade é uma das heranças imateriais que os povos colonizados pelos portugueses agregaram ao seu imaginário, sobretudo, à forma de se relacionar com o passado. Guardadas as singularidades de cada povo, os portugueses nos ensinaram a sentir saudade como o fizeram às gerações que se sucederam dentro do próprio país ibérico. Como falantes do português, nós, brasileiros, nos regozijamos nos versos do poeta romântico Casimiro de Abreu: “Oh! que saudade que tenho /da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!”, e até dissimulamos a rebeldia sussurrada de uma Chega de saudade na canção de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, onde a tristeza é a mensageira, e a melancolia é a companheira inseparável. Podemos também encontrar o refinamento poético inspirado na saudade no cancioneiro nordestino, como em Lembrança de um beija-flor, de Accioly Neto, nos versos: “Saudade já tem nome de mulher / só pra fazer do homem o que bem quer…”.
Se na música popular do Brasil a saudade foi incorporada por ser parte do imaginário nacional, se desdobrando em “várias saudades” melodicamente sentidas e ressentidas nos diversos ritmos da notável miscigenação que nos formou, na música popular portuguesa é o fado quem melhor representa a intensidade expressiva da saudade. Algo que pode ser identificado em grande parte das canções desse estilo musical genuinamente português, como no Fado da saudade, interpretado por Amália Rodrigues: “Eu canto o fado pra mim/ Abre-me as portas que dão/ Do coração cá pra fora/ E a minha dor sem ter fim […] Eu canto o fado pra mim/ já o cantei pra nós dois […]”. O fado — talvez por seu saudosismo essencial — permanece como símbolo da tradição musical portuguesa, sendo reconhecido, inclusive, como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO; e continua a influenciar a musicalidade de Portugal como um todo.
A saudade, mais do que uma palavra exclusivamente portuguesa, é um sentimento universal. Ela pode ser sentida a partir de experiências pessoais e, de alguma forma, se moldar a essas situações particulares, dando a falsa ideia de “sentimento singular”. Em contrapartida, a saudade pode ser fruto ou motivo de uma memória coletiva, geração a geração, produzindo uma série de arquétipos melancólicos, como no caso do atemporal imaginário português ou dos milhões de migrantes nordestinos que se espalharam pelo sul e sudeste do Brasil, levando consigo “no peito” aquela “saudade que nada dá jeito”, mas que, paradoxalmente, é gostosa de se sentir.
3 respostas
A saudade resume lembrar das pessoas que mais gostamos, lampejos que tivemos em vida, situações que passaram por meio de pessoas queridas que estiveram ao nosso redor. Simboliza grandes momentos. Também atrelado a isso, existe a nostalgia por algo que marcou: na infância, adolescência e fase adulta. Um artigo incrível, acho que já fiz poesia sobre…
Belo texto..saudade só cada pessoa sente a sua. Eu recitava o poema do Casimiro ( Meus 8 anos) quando criança, hoje só lembro até….”que amor que sonho que flores, naquelas tardes fagueiras à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”.
Um belo texto sobre um sentimento dicotômico!